Por Renata Rogé
De cabeça para baixo
Eram três da manhã quando Danilo me acordou. As luzes já estavam acesas e todos pegavam suas malas e desciam do ônibus apressados.
“Chegamos” - ele me disse.
“Hmmn...?” - foi minha resposta, mas ele já estava de pé com a mochila nas costas.
No escuro, enquanto éramos abordados por dezenas de pessoas oferecendo transporte e hotel aos recém-chegados, tentávamos decidir o que fazer.
“Eu não entendo os ônibus noturnos de Myanmar. Por que todos saem por às 19h se vão chegar no meio da noite?”.
“Não sei, mas é o que é, né? Temos que ver o que vamos fazer até amanhecer.”
Negociávamos com os homens que nos ofereciam transportes – usavam saias compridas (chamadas longyi, a roupa tradicional do país), e tinham as bochechas pintadas com uma espécie de tinta branca (“maquiagem” tradicional para proteção contra o sol). Tentávamos explicar que não precisávamos de hotel, apenas um lugar para esperar o sol nascer.
“Não temos lugares abertos vinte-e-quatro-horas” dizia um deles, em um inglês quebrado. “É melhor vocês ficarem em um hotel, meu amigo tem um muito bom, não é caro...”.
A essa altura da viagem estávamos cansados de “hotéis de amigos muito bons que não são caros” - nossa experiência ensinou que eles não eram bons e eram caros.
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Inle Lake, Myanmar |
“Eu conheço um lugar que está aberto”, um rapaz não muito diferente dos outros nos disse já quando decidíamos esperar na minúscula “rodoviária” (um ponto de ônibus apenas com um telhado e uma luz). “Uma senhora faz samusas (espécie de pastéis recheados com uma mistura condimentada de batata, ervas aromáticas e vegetais) e os vende no café da manhã para pessoas que acordam muito cedo. Ela tem que começar a fritá-los agora, então estará acordada. Lá vocês podem comer e esperar o sol nascer.”
***
Uma viagem é um bom momento para repensar algumas coisas da vida. Mas quando decidi fazer um intercâmbio de um ano no Japão com direito a mochilão pela Ásia, não sabia o quanto eu repensaria minhas escolhas.
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Miyajima, Japão |
Mas não era isso que iria me impedir: eu precisava daquela mudança. Já havia morado fora do Brasil antes, quando tranquei a faculdade para passar alguns meses em Nova York estudando inglês depois de me decepcionar com o curso já no primeiro ano, e senti que estava na hora de mais uma experiência como aquela. Eu aprendi tanto durante aqueles meses – não só inglês, mas a viver sozinha, superar meus medos, entender um pouco mais como o mundo funciona fora do Brasil. Além disso, foi lá que descobri o jornalismo de viagem de alto nível, com reportagens profundas e mais focadas em outros aspectos de viagem que não o turismo: o mesmo que queria retratar em meu TCC e que eu não encontrei nas revistas brasileiras em que trabalhei quando voltei para o Brasil. O intercâmbio seria então uma espécie de escapatória de um curso e um mercado de trabalho decepcionantes e uma experiência emocionante que poderia me ajudar e estimular a fazer o tipo de jornalismo que eu queria fazer.
Comecei a pesquisar que países tinham convênios com a USP e ficava imaginando como seria visitá-los. Eu queria ir para longe, o mais longe possível, no lugar mais diferente possível. Após algumas tentativas frustradas com convênios com a China, Turquia e Coréia, e depois de muita burocracia e noites ansiosas em claro, finalmente consegui uma vaga no convênio perfeito: um curso sobre língua e cultura japonesa para alunos estrangeiros em Kyoto. As aulas seriam contadas para minha graduação no Brasil, e eu poderia aprender tudo sobre a língua e cultura japonesas durante o próprio curso, o que facilitaria meu TCC.
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Angkor Wat, Camboja |
E quando cheguei no Japão, o tempo voou. Foram alguns dos momentos mais divertidos, interessantes e felizes que já tive. A Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto (KUFS), na qual estou estudando, é uma faculdade de língua estrangeira onde alunos japoneses escolhem entre inglês, francês, alemão, chinês e até português, e alunos de diversos países vêm aprender japonês. Por isso, conhecer pessoas novas foi muito mais fácil do que tinha imaginado, e fiz grandes amigos de vários países.
Mas ao longo do tempo percebi que, apesar de eu ter me divertido e aprendido muito com eles, nossa relação não era como as que tenho com meus grandes amigos no Brasil. É claro que não poderia ser – meu grupo de amigos no Brasil se conheceu no São Luís em 2007 e 2008, e é muito próximo até hoje. Além disso, já estava sentindo muitas saudades da minha família, mesmo depois de eles terem vindo visitar durante o natal e ano novo.
Quando conversava sobre isso com meus amigos do Japão e contava que meus fins de semana no Brasil eram cheios de almoços de família e noitadas de pizza, cerveja e vinho com meus melhores amigos, muitos me diziam que não tinham esse contato frequente com suas famílias ou um grupo tão extenso de amizades duradouras. Foi quando comecei a perceber que o que eu achava normal e corriqueiro talvez não fosse tão comum assim.
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Bangkok, Tailândia |
Logo antes de embarcar no entanto, eu comecei a pensar novamente em meu TCC e como eu, já na metade do intercâmbio, não tinha nem começado a fazê-lo. Isso trouxe de volta toda minha vida no Brasil, que até agora, com tanta coisa acontecendo, eu nem lembrava mais. E acabei levando isso comigo para a primeira parada do roteiro: Kathmandu.
Pelos nossos caminhos entre Nepal e Butão, Elva e eu conversávamos sobre tudo. No Peru, ela estudou direito por 3 anos, mas decidiu que não era o que ela queria fazer e mudou para sociologia, com foco em sistemas educacionais. Veio para o Japão meio a turismo, meio a estudo: queria aprender sobre a cultura e o sistema educacional japoneses. Entre passeios pelos mercados de Kathmandu, pelas trilhas do parque nacional de Chitwan nas costas de um elefante, de barco no lago de Pokhara vendo a cordilheira do Himalaia, conversávamos sobre a vida no Japão, como seria voltar a nossos países de origem e o que planejávamos fazer. Ela, que só fez um semestre de intercâmbio, voltaria ao Peru dentro de um mês.
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Tiger’s Nest, Butão |
“Como?”
“Eu não tinha certeza da minha escolha por sociologia. Não sabia se abandonar o direito seria a melhor escolha. Mas agora, vivendo no Japão e viajando pela Ásia, pude ver várias coisas que aprendi na prática, e isso me deixou muito animada com a minha profissão”.
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Chitwan National Park, Nepal |
Quando encontrei o Danilo em Bali, tinha tido um tempo sozinha em Hong Kong e Macau para por os pensamentos em ordem. Decidi começar a prestar atenção no porque eu estava viajando – se não era para escrever a respeito, então para que era? E a cada aventura que tínhamos – dirigindo uma moto pela primeira vez para ver um templo incrível e pegando uma tempestade tropical no meio de uma estrada de terra minúscula no interior de Yogyakarta, na Indonésia; nadando com tubarões-baleia e tentando lidar com a polícia filipina em Cebu quando roubaram meu celular; aprendendo a mergulhar no Vietnã e entrando em choques culturais um pouco assustadores em Myanmar – eu chegava à conclusão que o porquê não importava. O importante era que eu estava lá.
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Cebu, Filipinas - Mergulho com Tubarão-Baleia |
“De fato, é o nascer do sol mais bonito que eu já vi” pensei. E, junto com isso, pensava que talvez o jornalismo não seja mesmo para mim, como o direito não era para Elva. E que eu não sabia o que eu queria fazer no lugar dele. E que o que eu queria mesmo era poder achar algum jeito de incluir em memórias incríveis minhas pessoas queridas, e que era importante preservá-las.
Agora, de volta ao Brasil, me sinto de cabeça para baixo. Não sei o que quero fazer da vida profissionalmente, nem como incluir as pessoas que eu quero manter em minha vida nos meus sonhos. Viajar não consegue te livrar de seus problemas. Viajar te sacode e acaba com todas as suas certezas. Mas, de algum jeito, isso te mostra que há muitos caminhos para se seguir além daquele em que você começa, e ajuda a enxergar mais claramente o que você quer – e o que você não quer.
Muito bom!
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